Quintal dos Poetas
Oficina Literária
editora independente
Artigos, Crônicas, Comentários e Aforismos
BREVÍSSIMO ENSAIO SOBRE A CANONIZAÇÃO DA MENTIRA
Em pleno século XVI Descartes nos ensinou que o caminho da verdade passa inexoravelmente pelo labirinto da indagação ou, como ele resumia em duas simples palavras: “duvide sempre!” Certamente era um negacionista exacerbado, caçador imaginário dos dragões das falsas verdades que emanavam dos tronos e dos púlpitos, sob as garantias dos mantos pesados das respectivas autoridades. Por isso mesmo, é ele um dos pais do pensamento livre e da gênese do moderno método de indução científica. Quer dizer, um mestre na ciência de construção do conhecimento verdadeiro. Lembro-me do grande filósofo racionalista sempre que me bate a coceira incômoda de uma dúvida. E isso é comum comigo, pois sou um caipira mineiro muito desconfiado, sempre a cismar com o acaso e a implacável regularidade do universo. Disso resulta minha mania de separar o joio do trigo e refinar a seara ao menor sinal de suspeita de que um “A” pode muito bem ser um solerte “B” disfarçado. Convenhamos que essa sublime e relevante picuinha intimista é uma orientação nobre, repleta de grandes virtudes cívicas e teologais que seduzem inocentes contumazes como eu. Contudo, já que eu não sirvo de exemplo graças a Deus, a humanidade ignora minas atitudes e poucos se dão ao trabalho de lançar mão da razão para entender a essência das coisas, mesmo, ocasionalmente, as mais banais. Ao contrário. Assim, fico no bloco das minorias. Hoje prevalecem os sectários que preferem viver no conforto de uma credulidade infantil que menospreza a capacidade de raciocínio com que o próprio Deus dotou o cérebro dos frágeis seres humanos transformando-os na mais perfeita obra da natureza. Criaturas dotadas em estados puros da razão e da sensibilidade: poetas, guerreiros e caçadores de ideias e tesouros. Como consequência dessa louca renúncia, passam a prevalecer a fé e o preconceito como critérios de verdade, embora, nesses casos, tais entidades sirvam apenas como antídotos às brandas inquietações dos espíritos preguiçosos. Ainda que a dúvida seja a viga mestra que sustenta tanto a moral quanto a ciência, a busca da verdade, através do exercício da lógica e da razão aplicada sobre fatos e evidências, está cada vez mais em desuso. Vai daí que a máxima cartesiana está, miseravelmente, dando lugar a um conselho indecente expresso na receita midiática: “bata na mentira sistematicamente que ela acaba virando verdade”. E essa excrecência segue sua carreira de sucesso crescente ecoando nas tribunas, tribunais, conversas-de-pé-de-ouvido, redações e estúdios de TV. Até mesmo nos Centros de Saber e de Pesquisa onde, por falta do exercício corriqueiro da dúvida e do método do raciocínio indutivo, abundam conclusões invertidas sobre causas e efeitos. E é aí que os bandidos viram artistas e os artistas viram bandido. Minguam cada vez mais as hordas dos militantes da lógica e da razão. Aqueles mesmo que acreditam que só é possível afirmar uma verdade depois que ficar provado que essa suposta verdade, “na verdade”, não é uma grande mentira. Quer dizer, do livre embate das contradições é que nasce a verdadeira luz que emana da verdade das coisas. E, convenhamos, isso deve valer até para os poetas e vagabundos. E muito mais ainda para os que assumem a ignomínia se meterem a “influenciadores”. Aliás, detesto a banalização dessa palavra infame. Por favor, não tentem me convencer de nada, apenas me deem o método e os fatos, pois eu nasci com o dom da análise crítica! Aliás, como todos os serem humanos, cada um na sua exata medida. A outra notícia ruim é que, infelizmente, vamos ter que nos conformar com esse incrível retrocesso obscurantista. Pelo menos por enquanto, já que o bicho tem as pernas longas como uma espécie que é: uma aberração extemporânea gestada na banda imoral de ideologias velhas e fracassadas. Mas, como ensinaa a suprema sabedoria da História: depois da luz vêm as trevas! Há sempre um renascimento, pois, a inquietação e a busca da verdade são tão naturais no ser humano quanto a luta pela sobrevivência e pela busca da felicidade. Claro que, a plena aplicação desses impulsos divinos só vale a pena se a alma não é pequena.
(Novembro 2024)
"Worke, Identititarismo, fascismo, nazismo, comunismo, relativismo da ordem e da justiça. Palavras ao vento desnorteando o bom-senso num vendaval de paixões. Talvez devêssemos voltar ao “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, acrescentando uma pitada do “Amai ao próximo como a ti mesmo”. Simples assim? Talvez não. Houve excesso de egoísmo e vícios, bem como carência de virtudes pessoais nos revolucionários franceses, assim como houve esses mesmo males nos sucessores de Cristo, Pedro e Paulo. Ficou um buraco no meio da tolerância com as pessoas adversas. Este deve ser o pedaço que está faltando agora. Seja como for, já sabemos o que fazer. Mas vamos ter que nos virar sozinhos, pois não virão mais messias".
"O Brasil está se tornando um país injusto e hostil às pessoas de bem. Particularmente me sinto inseguro e oprimido. Já sou idoso e receio morrer num ambiente sócio-político que representa um retrocesso absurdo para alguém que passou a vida inteira acreditando no progresso das ideias, no aperfeiçoamento das instituições, na melhoria contínua dos serviços que o estado tem obrigação de prestar à população e na evolução dos padrões de convivência entre as pessoas, quaisquer que sejam as suas ideias, características pessoais, suas preferências e sua fé. Enfim, receio muito pela qualidade do futuro reservado aos meus filhos e netos na terra em que nasceram."
"Guardem seus livros com carinho, pois em breve eles serão tão raros quanto os pergaminhos de Alexandria e talvez até mais preciosos do que eles, pela extensão e profundidade dos conhecimentos que contêm e que só serão acessíveis a uns poucos no futuro. E serão esses poucos que farão a diferença."
"Evite restringir suas fontes de consulta à varinha miraculosa do Google pois, na internet, você só terá acesso a conhecimentos rasos e incompletos. O autêntico saber é fruto do trabalho intelectual árduo e persistente, não é um mero exercício de teclado nem um ping-pong mágico com a Alexa e a IA . E tome cuidado com essas maravilhosas criaturas, pois quanto mais inteligentes elas ficarem mais burro você ficará".
"O presente, assim como já foi futuro, logo será passado. Apesar disso teve antecedentes e terá consequentes que o farão exatamente como era, como é e como será. Não é uma ilusão pois está carregado de sentimentos que o mantem vivo na memória do passado e vivo nas expectativas do futuro"
"Tem alguma coisa muito errada com o funcionamento do nosso modelo de democracia. Não sei se o defeito vem da obsolecência natural da nossa constituição ou se vem do vil caráter das pessoas que deviam zelar por ela"
A BESTA E OS “MANÉS”
A corrosão da ordem política do Brasil, atualmente em curso, está gerando uma criatura nunca vista antes em qualquer parte civilizada do mundo ou em qualquer fase da História. Também pudera, nunca se viu tanta inversão de valores em tão pouco tempo e em lugar tão extenso. E cá está essa coisa disforme e descomunal arrastando o seu rabo sáurio pelos salões ilustres da nação. Usualmente as criaturas dessa espécie nascem de um golpe de estado disruptivo e violento. Nesse caso, não. Houve uma ruptura constitucional sim, mas não houve um parto sanguinolento. Que não me ouçam os Infelizes do Oito de Janeiro. Aqueles tantos idosos e pipoqueiros que amargam até hoje - e amargarão por muito tempo mais - a singela audácia de percorrer as repartições de Brasília alucinados, quebrando coisas, rabiscando paredes e monumentos, desnorteados sem saber como desligar a tomada dos seus fundados temores. Sem esquecer, claro, os parlamentares “desimunizados”, encarcerados por um golpe mortal de caneta, exata razão inversa da “descondenação” e desencarceramento de um inconteste meliante devidamente julgado e sentenciado na forma estrita da lei. Sem esquecer, também, dos jornalistas exilados e dos supostos articuladores de um golpe de estado quimérico e delirante que teria sido hilário se não tivesse sido trágico. Mas, no geral, o estupro foi persuasivo e gentil, o trabalho de parto não registrou complicações de monta e contou com ampla e asséptica assistência dos guardiães da bruxa parideira. Seja como for, da cavidade escura surge um monstro de quatro cabeças, unidas num tronco asqueroso lambuzado de um visgo fétido e infecto que respinga na plateia.
A criatura aberrante que vaga por aí obscurecendo o nosso dia-a-dia, não extrai somente do abuso de autoridade a força dos seus mandados, mas também de um certo “excesso de omissão” generalizado, proveniente tanto do Estado quanto da Sociedade Civil. Essa omissão contaminante começa na própria Corte Suprema do país. Por incrível que pareça, esse é exatamente o lugar onde está plantada a cabeça luzente e o braço implacável da temida criatura.
A segunda cabeça da besta é aberrante também. Falo da omissão da entidade nacional representativa dos advogados da nação, cujas cúpulas diretivas, também por incrível que pareça, adotam uma linha do silêncio. Conduta que nega a própria essência da sua missão histórica, posta desde o advento da república. Aquela mesma que remonta aos tempos da Grécia e Roma, berços do direito moderno e arena de lutas fundamentais contra a tirania e a favor da liberdade, do debate, da controvérsia, das práticas da cidadania e do amplo acesso à proteção do Estado e às garantias da lei.
Omissão também da chamada “Grande Imprensa”. Quantitativamente grande, com certeza, mas dócil e submissa, acomodada no vil papel de faxineira das sujeiras espalhadas pela fera sobre os pisos de granito das altas repartições e a laje fria das prisões. E essa imprensa o faz com muita competência ressuscitando os mortos e enterrando os vivos. Essa é a inversão que mais condói, pois é a mais torpe e traiçoeira. Até porque, é um golpe baixo aplicado justamente pela instituição moderna que mais tem a cara do povo.
E por último o mais grave. Falo da omissão do Parlamento. Falo da maioria dos representes do povo aboletados nas amplas, macias, temperadas e dispendiosas dependências do Congresso Nacional, submissos a um presidente conivente e igualmente totalitário que impede - por vontade própria e sem qualquer motivo - que a bala de prata da vontade do povo atinja o coração da besta e acabe de vez com o pesadelo. Trata-se do maior caso de rabo preso da História do Brasil. Aliás, pátria amada dos rabos presos do mundo.
O povo, todavia, não está conformado e tenta fazer a sua parte esgrimindo varas, levantando faixas e se aglomerando espetacularmente nos quatro cantos do país, como nunca dantes se viu. Timidamente contudo, pois a sanha persecutória é cruel e temerária. Mas haverá de obter sucesso pois, afinal, a democracia é o estado natural de convivência política que os cidadãos conquistaram tão duramente ao longo do processo civilizatório e que, por isso mesmo, merece todo respeito à essa altura do campeonato. Talvez os Manés não obtenham sucesso imediato e tenham que esperar que a própria dinâmica da política mate a Besta por inanição, pois esse é o destino das aberrações e das opções invertidas. Afinal o bem sempre triunfa. Você só tem que estar vivo para testemunhar esse triunfo. Que Deus te guarde companheiro!
(Em 20 de agosto de 2024)
EU E AS MÁQUINAS
Comecei a mexer com computadores por volta de 1993. Quer dizer, há vinte e quatro anos passados. Naquela época não havia ainda o windows e os programas rodavam em plataforma Dos. Os monitores não tinham capacidade de gerar imagens e o que aparecia nas telas eram apenas letras e números verdes, meio borrados. Não havia pen-drives mas apenas uns disquetes flexíveis mal ajambrados que arranhavam com facilidade. Mas o essencial da utilidade popular do computador já havia sido criado, quero dizer os editores de texto e as planilhas. Nunca fiz qualquer curso para aprender a manusear computadores e sempre o fiz de forma intuitiva. Durante muitos anos achei que os computadores haviam facilitado muito a minha vida. Hoje penso nisso com mais comedimento. É que essas máquinas estão, cada vez mais, deixando de nos servir. Ao contrário e, com perdão do trocadilho, nos é que nos tornamos servidores. Observem o quanto somos hoje manipulados, quando sentamos à frente do maravilhoso teclado de um computador e tentamos comandá-lo, esperando que ele facilite a nossa vida. Há certos comandos que ele simplesmente se recusa a obedecer. E mais, assume o controle e inverte o jogo. O mundo digital criou uma linguagem própria e um código de conduta que, muitas vezes, descamba para o surreal. Essa condição é especialmente sentida por quem não nasceu na era digital como eu e sente todo o conflito da mudança. Quem nasceu não tem tanto problema, vai se deixando levar facilmente sem sentir nenhum desconforto pois para ele o mundo real e o virtual parecem mais ou menos iguais. Não vou dizer se isso é bom ou se é mau, mas a mim incomoda muita coisa inserida no lado cotidiano dessa fábula em que muita gente convive e acha perfeitamente normal.
Os exemplos dos meus desconfortos abundam especialmente nos serviços de atendimento eletrônico. Reparem como nesses serviços, depois de dialogar um tempão com uma máquina, você acaba conseguindo dialogar com uma pessoa que... vai agir exatamente como se fosse um computador lendo um manual mal redigido. Tenho um caso recente e preciso relatá-lo. Entrei no site do INSS tentando me cadastrar para receber uma senha que me permitiria acessar certas informar reservadas sobre mim mesmo. Tive que responder a várias perguntas sobre coisas pessoais acontecidas há mais de dez anos. Fiquei indeciso sobre algumas delas, mas respondi assim mesmo. Acabei reprovado, provocando na máquina uma séria dúvida se eu seria eu mesmo. Mas ela teve a bondade de me orientar a ligar para determinado número para tentar resolver o problema. Liguei e depois de vencer várias etapas eletrônicas acabei caindo numa telefonista de verdade que me fez exatamente as mesmas perguntas que eu não tinha sabido responder à máquina. Claro que fui novamente reprovado. No final a solução que ela me deu foi que eu tentasse tudo outra vez dentro de alguns dias. Agradeci e disse que ia desistir da aventura e procurar um posto de atendimento para tentar solucionar o problema cara a cara. Mas esse é só um aspecto marginal do domínio que a linguagem eletrônica, advinda das peculiaridades da interação com os computadores, empurrou em nossas vidas pacatas. Pior é aquele lado que caracteriza nossa total submissão à máquina quando estamos interagindo com ela na santa paz do nosso lar.
Vejam como é comum o computar recusar certas configurações que você prefere e instalar aquelas que ele acha que são muito melhores para você. Sem esquecer as atualizações que em geral, pioram o despenho dos sistemas. Isso quando não provocam uma pane geral numa coisa que vinha funcionando muito bem Meu Tablet, por exemplo, está carregado de aplicativos que foram instalados sem minha permissão e que eu não consigo descartar. Já virou uma árvore de natal de tanto penduricalho que lhe foi imposto e que não servem para nada. Ficou lento e eu praticamente deixei de usá-lo. Pode ser que essa não seja uma solução amena pois quem deixar de se conectar hoje em dia, vai acabar sendo desligado da tomada global. Mas, é mais ou menos por aí que pretendo ir, tentando encontrar um ponto de equilíbrio antes que me torne um dependente digital submisso e desenganado.
(Em 05 de setembro de 2017)
EU SICO, TU SICAS
O advérbio SIC é uma abreviação da expressão latina sic erat scriptum. É usado desde a idade média, quando era prática consagrada abreviar as grafias das palavras ou expressões para facilitar o penoso trabalho dos copistas de manuscritos. Não é portanto uma sigla e sim uma simplificação linguística. Significa literalmente "assim estava escrito". Nossos dicionários ensinam que o termo expressa algo como "é assim mesmo, por mais estranho que pareça". Um dicionário especializado em bibliografia ensina que o SIC é um advérbio latino que se usa em impressos e manuscritos para esclarecer que uma palavra ou frase que pode parecer incorreta está perfeitamente de acordo com o texto. A rigor, portanto, a expressão deve ser usada para indicar que uma palavra ou expressão foi retirada do original exatamente como está transcrita. É um alerta ao leitor de que se há eventuais erros ou bizarrias na citação o responsável é o autor citado e não quem está citando. Por conta do scriptum original, em princípio só se aplicaria em citações de textos escritos. Contudo, como vivemos numa época de muita liberalidade, alguns autores, já admitem o uso do SIC também na citação de declarações orais, como as provenientes de entrevistas ou discursos. Assim, enquanto o Aurélio Buarque de Holanda restringe a aplicação do advérbio somente ao texto, o Houaiss e o Caldas Aulete não o fazem, usando a palavra citação e deixando, portanto, aberta a possibilidade de que tais citações possam vir de uma fonte oral. Aqui há uma dificuldade de ordem lógica já que é um tanto problemático delimitar a autenticidade ipsis verbis de uma fonte oral.
Alguns vão mais longe ainda no seu liberalismo admitindo o uso da expressão para indicar qualquer tipo de erro cometido em alguma declaração seja gramatical, de lógica, de veracidade; o que pode descambar para o exagero. A mim, definitivamente não agrada o uso do advérbio latino na citação de textos que contenham declarações ou significados dos quais simplesmente discordamos. É que aí o advérbio vira exclamação o que me parece uma redução meio simplória. Nesses casos é muito comum o uso da expressão com conotação irônica ou debochada e aqui me sinto mais incomodado ainda. Sim pois aflora um certo pedantismo e corre-se o risco de levar um SIC no pé, quer dizer, o ironizador acabar sendo ironizado pela sua simploriedade. Além disso, nessas situações, muitas vezes, o termo é aplicado sobre um texto idealizado pelo próprio ironizador o que se constitui, sem nenhuma dúvida, uma prática absolutamente ilegítima já que não se trata propriamente de uma citação. Esses casos abundam na imprensa e na internet, aliás, notórios redutos de textos mal produzidos. Também há casos de usos que acabaram gerando distorções localizadas. Na área da saúde, por exemplo, é comum o uso do SIC para particularizar algo estranho que um paciente tenha dito. O mais curioso é a explicação de que esse SIC significa "Conforme Informação do Cliente". Essa doeu, não?
Enfim, ocorre com o uso da bela expressão latina sic erat scriptum o mesmo que corre com a língua em geral, ou seja, ela sofre um processo de deterioração no qual prevalece a popularização pragmática do uso em detrimento da beleza etimológica e a pureza da origem. Nesse processo estabelece-se algumas opções. É na escolha dessas opções que os bons escritores se diferenciam dos meros produtores de textos ou, por outra, os analíticos diferem dos sintéticos. Mas como o mundo caminha inexoravelmente para a massificação e a simplificação, infelizmente os segundos vão acabar triunfando e os alhos vão acabar virando bugalhos. De qualquer forma, caldo de galinha e prudência gramatical nunca fazem mal a ninguém.
(Em dezessete de agosto de 2017)
HISTÓRIA SUCINTA DA PANQUELETE
Não sei se acontece com vocês, mas comigo é uma constante. Falo da necessidade de ir para a cozinha improvisar algo para comer quando se está com pressa ou com preguiça. No meu caso, normalmente não estou com pressa, mas estou quase sempre com preguiça.
Às vezes minha disposição para cozinhar chega às raias da catalepsia autoinduzida. Mesmo assim, muitas vezes tenho que ir para a cozinha preparar o rango. Mas meu instinto de homo sapiens induzido pela lei do menor esforço tem me ajudado muito. Por exemplo, outro dia, num insight genial, inventei a panquelete. É o cruzamento bastardo da sofisticada panqueca com o pragmático omelete. Não sei se o prezado leitor já tentou fazer panqueca. É muito trabalhoso, a massa tem que descansar uns tempos, o manuseio da fritura é delicado e os requisitos de qualidade são rígidos: tem que ficar levemente dourado e enrolado com perfeição, sem extravasamento do recheio pelos lados. E ainda tem um incômodo pois, depois você ainda tem que fazer a coisa mais aborrecida na arte de cozinhar que é lavar o liquidificador. Já o omelete é bem mais fácil, não requer nenhum delicadeza. É só misturar, fritar e enrolar. Se der problema durante a produção você ainda tem opção de rebaixar o dito omelete à condição de mexido e aproveitá-lo assim mesmo. Considerando, contudo, que a panqueca e o omelete guardam um certo grau de parentesco, concluí que seria possível juntá-los com expectativas promissoras. Estabelecida essa premissa parti para a fase de experimentação. Confesso que acertei já da primeira vez. Eis o resultado: uma panquelete douradinha, enroladinha, saborosa e feita em menos de cinco minutos. Isso posto, sem mais delongas passo-vos a receita da panquelete de presunto e queijo.
Bata o ovo com grosseria numa xícara e reserve em local fácil de achar. Junte uma fatia de mozzarella e uma de presunto e reserve, ambos frescos naturalmente. Em fogo baixo, esquente óleo numa frigideira pequena, rasa e de fundo reto ou numa panquequeira que nada mais é do que uma frigideira pequena, rasa e de fundo reto. O óleo deve ser mínimo, o suficiente apenas para untar o fundo da frigideira por igual. Quando estiver quente derrame o ovo batido, nem antes nem depois. Movimente a frigideira espalhando o ovo de forma a cobrir todo o fundo. Seja artista e faça a fritura ficar redondinha. Coloque as fatias de presunto e queijo sobrepostas sobre o ovo frito e desligue o fogo. Atenção para a ordem: o queijo por cima do presunto. Enrole o conjunto delicadamente usando uma espátula pequena e até os dedos limpos, se necessário. Não entenda mal: eu disse que se usar os dedos eles devem estar limpos. (Os argutos devem ter percebido que a parte mais genial do método é aquela de enrolar a massa do ovo frito com o presunto e o queijo em fatias inteiras superpostas. É como enrolar um canudo de papel, não há erro).
E... está pronto!
Parece uma maravilhosa panqueca mas é uma maravilhosa panquelete. Mesmo aspecto, sabor quase igual e muito mais fácil de fazer. Essa é de presunto e queijo. Sugiro que você tente outros recheios, de preferência fatiados para aproveitar o macete do canudo de papel. Se você não se entusiasmou com o resultando, não achou a ideia genial ou acha que ela não é original, não se preocupe. Não busco glória, mas apenas uma forma de tornar a cozinha um local mais alegre e descontraído. Em assim sendo, se você também tiver criando alguma coisa nessa linha me mande a dica. Seremos dois simplórios trocando receitas caseiras práticas e preguiçosas.
(Em doze de agosto de 2017)
PARAÍSO TROPICAL
O Brasil é o paraíso dos criminosos e condenados? Sim. Sempre foi assim. Está na raiz da nossa história. O país nasceu brando para com essa gente. Tem tradição na doçura do trato com bandidos. Está arraigado na nossa cultura, na lei, na jurisprudência, na cabeça do juiz, do legislador, do padre, do jornalista, do eleitor. Tudo começou por volta do mês de maio do ano da graça de 1500. Nascia a terra de Santa Cruz e com ele o Nirvana dos sentenciados e, por extensão, dos criminosos em geral. O primeiro beneficiário chamava-se Afonso Ribeiro. Justamente um dos condenados trazidos por Pedro Álvares Cabral para cumprir pena de degredo nas novas terras ultramarinas que os lusos estavam certos de encontrar nos ermos do poente do atlântico oceano. Doce degredo que a terra bralisis inaugurava com a naturalidade de tudo que lhe é peculiar. Ao se aproximar da terra recém descoberta o temeroso condenado nem acreditou no que viu. Praias e mulheres maravilhosas, frutas em abundância, vegetação luxuriante e animais exóticos. Literalmente um paraíso tropical. Se pensam que eu exagero, ouçamos o que disse o próprio Pero Vaz de Caminha, testemunha ocular daquela história.
Disse ele a respeito da terra:
“De ponta a ponta é toda praia… muito chã e muito formosa”.
E a respeito das nativas:
“E uma daquelas moças era (…) tão bem feita e tão redonda e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, envergonhariam por não as terem suas”.
Quer dizer, a pena do sortudo Afonso Ribeiro era literalmente viver no paraíso, livre, leve e solto. E da prole dele com as belas nativas começou o povoamento mestiço da terra. Não podia dar outra, a doçura para com os criminosos se tornou genética e paternal, fincada na gênese da nação. Mais de quinhentos anos depois o espírito da coisa continua firme. E haja embargos declaratórios e infringentes. Justificáveis, pois precisamos nos acautelar das sempre traiçoeiras injustiças pois, como ensina a aritmética piedosa da brasilidade: “é preferível noventa e nove culpados livres do que um inocente condenado”. Mas a história continua e depois do degredado luso vem uma série infinita de outros agraciados com a brandura paradisíaca original que até tomou dimensões globais. Ladrões de trens ingleses, terroristas italianos, cá vieram dar pois a terra é chã e as nativas são formosas.
E ainda tem a notória bondade natural dos nossos magistrados, o que também faz parte do caldo amargo da nossa piedosa tolerância. Em que outro recanto do mundo notórios malfeitores, já condenados, ganham tornozeleiras eletrônicas que os habilitam a cumprirem suas penas tomando sol nas piscinas das suas mansões? Não é difícil obter a graça. Quem não consegue o mimo por falta de fundamentação jurídica, basta alegar problema de saúde. Qualquer hipertensão serve.
Com certeza, não é por medo da mão pesada da justiça, que alguém tem motivos para não praticar crimes no Brasil.
(Em oito de agosto de 2017)
DIA DO ORGULHO SENIL
Os homossexuais já assumiram, os negros fazem questão de adotar modas que realcem as características da sua “raça” e culturas ancestrais, as feministas não perdem a menor chance de mostrarem que não são inferiores aos homens em nada. O dia do orgulho gay é um sucesso mundial, etc. Até os grupos neonazistas têm seus eventos e suas exibições paranoicas sem nenhum constrangimento. E os velhos? Quando será criado o “dia do orgulho senil”. Por enquanto não vislumbro a menor chance. E não haverá tão cedo. Pelo menos enquanto os velhos não assumirem a sua condição. Qual é o problema em ser velho, se todos seremos um dia? Não sei muito bem porque tendemos a negar ou esconder a velhice como se ela fosse uma doença ignominiosa e evitável. Mas é assim. Os velhos, em geral, não perdem a chance de mostrar que ainda não envelheceram e fazem isso normalmente demostrando que ainda são capazes de ter comportamento e habilidades de jovens. Normalmente, caem no ridículo. Sem falar nas plásticas malsucedidas e nas tinturas destoantes de cabelos, barbas e bigodes luminosos em seus frescos pretos azeviches.
Confesso que detesto propagadas de tônicos rejuvenescedores, ou de planos de aposentadoria privada que mostram velhos inverossímeis correndo de moto, carregando uma prancha de surfe debaixo do braço e coisas do tipo. E ainda tem os milagrosos estimulantes sexuais que nos habilitam a namoros melhores do que os que tivemos quando realmente éramos jovens, belos e atléticos.
Minha mulher costuma dizer que nesse assunto de velhice assumida, eu ando na contramão e tento parecer mais velho do que realmente sou. Não sei se ela tem razão, ando meio detonado mas não reclamo tanto assim. Até tenho uma prova em contrário. É que voltei a ter alguns hábitos que tinham quando era adolescente: passo grande parte do dia lendo e ouvido música clássica como faziam ali por volta dos meus quinze anos. Alguns podem até dizer, com maldade, que eu nunca fui jovem. Nem tanto. Talvez eu apenas tenha um ritmo diferente que ameniza as etapas da idade.
Seja como for, sinto que ainda não arrefeceu minha veia de ativista político, pulsante na década de 1970. É que eu estive pensando em criar a uma associação destinada e valorizar a velhice como ela é, com suas vantagens e desvantagens sem eufemismos e fantasias. O ponto culminante do movimento, claro, seria a criação do “Dia do Orgulho Senil”. Certamente eu seria o presidente da entidade. Mas aí surge uma dúvida quanto ao meu engajamento . É que que eu detesto velório e como presidente de uma associação desse tipo, provavelmente, toda semana eu teria que ir a um, prestando a última homenagem a um bravo militante que se foi.
(Em três de agosto de 2017)
SEIS x MEIA DÚZIA
Sempre concordei com o singelo entendimento de que a constituição de um país é o seu principal patrimônio político. Até porque, constituições de conteúdo autoritarista são mero eufemismo, pois o sentido intrínseco de uma constituição é exatamente conter as imposições autoritárias, garantir o equilíbrio dos poderes e a soberania dos direitos fundamentais. É, enfim, a âncora que garante a segurança da nação quando os mares da política se encontram tormentosos. O Brasil, atravessa hoje uma das piores crises políticas da sua história. Não obstante, ninguém se lembra da utilidade da nossa Constituição como recurso para acalmar os afoitos e conter as soluções esdrúxulas que pipocam o tempo todo. Ao contrário, todo mundo quer mexer na constituição, cortar aqui e emendar acolá, criando um Franknstein para acomodar casuísmos. É óbvio que a nossa constituição não é boa. Mas só tende a ficar pior com as colas e remendos oportunistas. Aliás, oportuno observar que a melhor forma de resolver nossos cruciais problemas no campo trabalhista, judiciário, previdenciário, do sistema tributário e do sistema político seria uma reforma constitucional ampla, integrada e consistente. Mas isso só seria produtivo se fosse feito através de uma Assembleia Nacional Constituinte formado por representantes da sociedade civil e não por políticos profissionais. Boa e antiga solução, tantas vezes usada com sucesso ao longo da história. Mas, o que todos querem à unanimidade, é exatamente o contrário, ou seja, remendar a constituição atual para acomodar casuísmo de políticos, autoridades e partidos.
Isso posto abro caminho para criticar frontalmente todas as propostas de reforma constitucional que andam por aí. São invariavelmente pontuais, descontextualizadas, e, geralmente, inviáveis. Entre elas, na minha opinião, se destaca a ideia de antecipação das eleições para a presidência da república. Está embutida numa lógica e numa logística política complexa e de altíssimo risco que passaria pela cassação de Temer e depois por uma reforma constitucional. Ambas medidas dependem de apoio de dois terços do congresso. No mínimo é um processo demorado que pode nem ser concluindo até a época do início das campanhas eleitorais da eleição presidencial do ano que vem. Além do mais, há o risco de só uma parte do plano dar certo, cassando o Temer o pondo o Rodrigo Maia no lugar, o que representaria a mais burra transação da história da troca do seis por meia dúzia. Até porque, politicamente, eu até acho que o velho corrupto Temer vale mais do que o novo corrupto Rodrigo Maia. Temer é muito mais hábil e experiente e, bem ou mal, está conseguindo tocar algumas reformas importantes e conseguindo se manter no poder apesar de estar em curso uma afoita conspiração para derrubá-lo. Ruim com ele, talvez pior sem ele. Claro que nada terei a me opor se ele for cassado pelo congresso e acabar na cadeia, mas temo pelo que virá na sequência da perda do mandato.
(Em primeiro de agosto de 2017)